Nos bastidores de Hollywood, onde as luzes brilham mais forte e as narrativas são cuidadosamente construídas, há um padrão que se repete de forma sutil, porém devastadora: o lucro derivado das histórias de pessoas negras, embaladas e vendidas ao público por pessoas brancas.
Um caso não tão recente teve um novo capítulo, Michael Oher, ex-jogador de futebol americano que teve sua vida retratada no longa “Um Sonho Possível” (The Blind Side), é um bom exemplo de como a exploração de história de pessoas pode gerar fortunas para alguns, deixando os verdadeiros protagonistas esquecidos, nas sombras. Oher, após longos anos de silêncio, tomou a decisão de expor o desconforto e as irregularidades em torno da forma como teve a vida narrada e capitalizada. Entretanto, ele não é o único. Existe um ciclo vicioso onde a indústria cultural se apropria das vivências negras, perpetuando injustiças sob a fachada do entretenimento.
Quem se lembra do sucesso desse filme? Michael foi retratado como o jovem negro vulnerável, “salvo” pela bondade de uma família branca em ‘Um Sonho Possível. Mesmo filme que rendeu um Oscar de Melhor Atriz para Sandra Bullock, não apenas reduziu sua história, mas a levou para um arco narrativo confortável para o público: o da ‘síndrome do salvador branco’.
Segundo o jogador, a história foi muito mais complexa, e diferente do que o filme mostra, ele nunca foi adotado pela família Tuohy, mas colocado sob tutela, um status que permitiu que eles controlassem sua vida financeira. Oher também alega que a família obteve aproximadamente 8 milhões de dólares explorando sua história, enquanto ele ficou à margem, com quase nenhum benefício do sucesso da produção. O caso mostra uma grande desconexão entre narrativa e realidade, e como histórias completas podem servir mais ao entretenimento e lucro do que à justiça ou verdade.


Não fique pasmo, existem outras histórias. A indústria do entretenimento tem um histórico de lucrar com narrativas negras, muitas vezes reduzindo a realidade para adequar às expectativas do povo branco. Na série “Roots” (Raízes), de 1977 por exemplo, que retrata a jornada de Kunta Kinte, africano capturado e escravizado na América, foi amplamente aclamada por seu impacto cultural. Mas, é importante questionar quem realmente se beneficiou com esse sucesso. Alex Haley, autor do livro que inspirou a série, foi acusado de plágio, além de enfrentar controvérsias em torno da autenticidade de sua própria obra. Ou seja, recebeu duas críticas sobre a integridade do que foi apresentado como uma história de resistência negra.
“Histórias Cruzadas” (The Help), também recebeu uma chuva de críticas ao tratar da segregação e do racismo nos Estados Unidos. O filme que rendeu Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante para Octavia Spencer, foi acusado de romantizar as relações raciais, além de minimizar o sofrimento de mulheres negras que trabalhavam como empregadas domésticas. O que temos? Mais uma vez a narrativa foi dominada pela perspectiva branca, com a protagonista sendo uma jornalista branca, que ‘dá voz’ às empregadas negras, exemplo clássico da ‘síndrome do salvador branco’.
Se olharmos atentamente veremos o quanto os números evidenciam essa disparidade. Segundo estudo da Universidade do Sul da Califórnia, em 2022, apenas 6¨dos filmes de maior bilheteria foram dirigidos por negros, enquanto 80% dos roteiristas de filmes de Hollywood eram brancos. Os dados revelam quem está no controle das narrativas e, por consequência, de quem tem lucrado com elas. A crítica ao Oscar, que tem sido historicamente acusado de ignorar talentos negros em favor de artistas brancos, culminou no movimento #OscarsSoWhite, destacando a falta de representatividade e reconhecimento de artistas negros na premiação.
Essa apropriação e reembalagem das histórias de pessoas negras para consumo de massas é uma prática que precisa ser criticada e questionada. O caso de Michael Oher pode ser recente, mas é só a ponta do iceberg de uma indústria que continua a lucrar com a dor, a resistência e a história de pessoas negras. É necessário que a sociedade repense o que consome e como consome. Afinal, até quando histórias como a de Oher serão moldadas por mãos brancas que capitalizam em cima de vidas negras? A reflexão que fica é: talvez o verdadeiro sonho possível seja um futuro onde as histórias sejam contadas e valorizadas em sua verdade, sem que sejam distorcidas ou usurpadas pelo lucro alheio.