Do livro à luta: o desafio de valorizar autores negros na educação

Durante boa parte da história, intelectuais negros e suas obras foram sistematicamente excluídas do currículo educacional, o que contribuiu para uma perpetuação de uma perspectiva eurocentrica que marginalizava as vozes e contribuições de comunidades afrodescendentes. Essa exclusão tem implicações profundas na formação da consciência social, cultural e histórica de estudantes, além de perpetuar estereótipos e preconceitos.

A exclusão não apenas limitou a compreensão dos estudantes sobre experiências e conquistas desta comunidade, mas também impactou negativamente a autoestima dos jovens negros. A falta de modelos a seguir na academia reforçou a perpetuação de preconceitos, contribuindo para a reprodução de desigualdades sociais.

Engana-se quem acredita que depois de muitos anos de batalha isso mudaria. É tão real que algumas pessoas duvidam. Recentemente a diretora de uma escola em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, criticou o livro “O Avesso da pele”, de Jeferson Tenório, alegando “vocabulários de tão baixo nível”.

Na mensagem encaminhada, ela solicita que  o governo federal retire os exemplares.

“Lamentável o governo federal, através do MEC [Ministério da Educação] adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível para serem trabalhados com estudantes do ensino médio. Solicito ao Ministério da Educação buscar os 200 exemplares enviados para a escola. Prezamos pela educação dos nossos estudantes e não pela vulgaridade”

O vídeo que circula nas redes sociais, mostra o trecho em que a Diretora lê fragmentos de algumas páginas, desconsiderando qualquer contexto. 

Do outro lado, temos Jeferson Tenório, escritor, professor e pesquisador brasileiro, radicado em Porto Alegre, autor da obra traduzida para 16 idiomas e ganhador do Jabuti, principal prêmio literário brasileiro. O Livro foi incluído no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) por meio de portaria em 2022 depois de passar por uma seleção publicada em edital de 2019.

Em seu perfil, o autor ressalta que a distorção de fake news são estratégias de uma extrema direita que promove a desinformação. E reforça que o  mais curioso é que as palavras de “baixo calão” e os atos sexuais do livro causaram mais incômodo do que o racismo,  a violência policial e a morte de pessoas negras estampadas no exemplar. E aqui, ele traz um ponto crucial que justifica a necessidade deste texto.

O “Avesso da pele” explora muito bem as graves implicações psicológicas de um racismo diário. Retrata também a questão da antiga violência policial, desde a falta de estrutura e treinamento adequado para estes profissionais que estão correndo risco nas ruas, até a sua manutenção violenta, que em alguns momentos utilizam suas fardas e armamentos para fazer “justiça com as próprias mãos”, através de julgamentos fundamentados em estereótipos e preconceitos.

Na narrativa, Pedro (o filho), vive uma perda trágica, o luto de Henrique (seu pai), professor que foi assassinado. Ele revive toda a vida do pai e outras memórias. Na obra, é possível analisar várias histórias  de contadas a partir dessa perda, a começar pelos momentos onde os personagens se descobrem negros, situação em que a cor da pele deixa de ser natural e começa a ganhar destaque: ela vira um peso. Através da leitura de Pedro, começamos a enxergar os porquês de pessoas negras se comportarem diferente, de manterem seus estados de alerta em inúmeras situações e sempre precisando justificar sua existência.

O Livro de Jeferson Tenório também aborda o cotidiano de pessoas negras numa sociedade extremamente racista. Insultos que são justificados como brincadeira e outras situações enfrentadas pelos personagens que moravam em Porto Alegre, capital Gaúcha.

Trecho retirado do livro:

“A vida simplesmente acontecia e você simplesmente passava por ela. Mas, quando o professor Oliveira contou para sua turma sobre Malcom X, quando vocês conversaram sobre Martin Luther King, quando pela primeira vez você ouviu a palavra “negritude”, o seu entendimento sobre a vida tomou outra dimensão, e você se deu conta de que ser negro era mais grave do que imaginava”.

A dúvida presente em diversos comentários nas redes sociais, inclusive do autor é: será mesmo que as palavras de “baixo calão” e os atos sexuais no livro são os reais problemas? Ou seriam as denúncias estampadas nas páginas? Alunos do ensino médio não conversam ou falam sobre sexo? Em que mundo estamos vivendo?

Tudo isso parece mais uma forma de retirar de cena uma obra feita por uma pessoa negra, que foi extremamente elogiada e premiada. Essa situação nos faz voltar a séculos passados, quando escritores, intelectuais e tantos outros tiveram seus trabalhos e suas pesquisas arquivadas, escondidas e silenciadas. O quão diferente seria o pensamento dos jovens negros se tivessem acesso aos intelectuais e as obras de escritores e escritoras negras durante a formação acadêmica?

Já imaginaram o cenário onde tivéssemos desde cedo acessos a literatura de Toni Morrison (Prêmio Nobel de Literatura), falando das complexidades da escravidão e suas reverberações, enquanto desafia e enriquece nossa compreensão do legado afro-americano, ou Chimamanda Ngozi Adichie, embora nigeriana, também merece menção, pois suas narrativas habilmente entrelaçam questões de identidade e colonialismo.

E se tivéssemos W. E. B. Du Bois, sociólogo e escritor, que influenciou o pensamento crítico sobre raça e sociedade com sua obra “The Souls of Black Folk” (As Almas da Gente Negra). Assim como Angela Davis, cuja análise acerca da interseccionalidade entre gênero, raça e classe é essencial para entendermos as complexidades da opressão. E se tivéssemos também o brasileiro Abdias do Nascimento, com sua obra “O Genocídio do Negro Brasileiro”, que oferece uma análise contundente sobre o racismo estrutural em solo brasileiro. Se tivéssemos a oportunidade de conhecer as obras Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina, como estaríamos hoje?

Contudo, é necessário encarar a triste realidade de que, apesar do impacto cultural e intelectual desses autores, o preconceito intelectual persiste. Muitos escritores negros ainda enfrentam barreiras sistemáticas, desde o acesso limitado a oportunidades de publicação até a subvalorização de suas contribuições. O desafio para quebrar essas barreiras é constante, e a representatividade na literatura é uma ferramenta crucial para inspirar os jovens estudantes.

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O Portal Diáspora se propõe a ser um espaço aberto para discussões em todo o contexto cultural, promovendo a valorização e visibilidade de contribuições negras em diversas áreas. Convidamos todos(as) a participarem ativamente na construção desse espaço, onde o preconceito intelectual e a invisibilização não terão lugar.

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Criado por Jadson Nascimento

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