O limite de tomar artistas dos EUA como nossos porta-vozes

A recente fala de Pharrell Williams, hoje diretor criativo da Louis Vuitton, reacendeu um debate que nunca se resolve: a defesa de uma meritocracia que ignora desigualdades históricas. Ao perguntar se alguém quer uma vaga “por ser negro ou por ser o melhor”, Pharrell não apenas simplifica questões estruturais, como reforça a falsa ideia de que desigualdade é resolvida apenas com esforço individual. 

A resposta imediata nas redes brasileiras mostra o quanto ainda buscamos referências nos Estados Unidos como se a realidade deles pudesse explicar – ou validar – a nossa. Comentários como “vocês se iludem com pretos americanos” ou “queria ser escolhida apenas por ser boa no que faço” revelam mais sobre a frustração brasileira com o próprio país do que sobre os artistas citados. 

Já a comparação com Morgan Freeman, famoso por minimizar o impacto da raça nas desigualdades americanas, demonstra como frases isoladas de figuras públicas acabam virando bússolas morais, mesmo quando se chocam com os dados: tanto no Brasil quanto nos EUA, a maior parte das posições de poder, da política ao judiciário, segue concentrada majoritariamente nas mãos de pessoas brancas. Essa realidade não se explica apenas por competência — ela é fruto de séculos de seleção social, econômica e educacional que privilegiou determinados grupos. Se isso não é, de certo modo, uma política informal de favorecimento, o que seria?

É curioso que, enquanto criticam políticas de ação afirmativa, muitos esquecem que, historicamente, políticas de acesso, de herança e de reconhecimento sempre beneficiaram grupos brancos. A diferença é que, quando o privilégio é antigo e normalizado, ele deixa de ser chamado de política e passa a ser visto como “natural”. Por isso a pergunta persiste: se mérito fosse realmente o único critério, será que os espaços de poder seriam tão homogêneos durante tanto tempo?

Mas o ponto mais sensível desse debate talvez esteja menos no que Pharrell disse e mais no que o Brasil insiste em esperar de artistas negros norte-americanos. Continuamos procurando nesses nomes um espelho, um guia ou até um aval para nossas próprias discussões. Só que os Estados Unidos têm outra história, outra dinâmica racial, outro tipo de disputa. Lá, apesar do racismo estrutural evidente, a representatividade negra na cultura pop é muito mais ampla; há mais visibilidade, mais narrativas e mais ferramentas institucionais construídas ao longo de gerações de movimentos negros organizados. No Brasil, o caminho é outro… e muito mais desigual.

Talvez esteja faltando reconhecer que Pharrell, Morgan Freeman ou qualquer outro artista norte-americano não tem obrigação de encarnar nossas pautas. Eles respondem à realidade deles. Nós é que insistimos em tratá-los como símbolos universais, quando o que precisávamos mesmo era olhar para nossos próprios intelectuais, artistas, pesquisadores e movimentos sociais. Porque, ao fim das contas, o discurso que escapa da boca de uma celebridade estrangeira não altera o fato mais básico – no Brasil, meritocracia é um ideal distante enquanto a cor da pele ainda determina acesso, expectativa de vida, renda, escolaridade e oportunidades.

A ironia é que seguimos defendendo artistas como se fossem patrimônios afetivos nacionais e nos decepcionando quando eles expressam opiniões que não cabem na nossa realidade. Talvez a pergunta agora não seja sobre mérito, seja sobre projeção. Até quando vamos transformar figuras internacionais em nossos porta-vozes e esperar que falem aquilo que gostaríamos de ouvir? Ou, dito de outro modo: até quando vamos tratar artistas estrangeiros como “representantes de estimação”, quando talvez o que falte mesmo é valorizar quem está lutando aqui, dentro das fronteiras que realmente nos atravessam?

Foto: divulgação

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Criado por Jadson Nascimento

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