Duquesa não entra em cena para ser apenas mais uma voz no festival The Town, e a foto dela de óculos futuristas, microfone em punho e tatuagens expostas já diz tudo antes mesmo de qualquer rima: existe uma estética de poder que se conecta diretamente ao que ela defende. Quando afirma, em alto e bom som, que não há espaço para elitismo nem embranquecimento na cultura preta, a artista se inscreve na longa tradição de mulheres que transformaram palco em manifesto — de Lélia Gonzalez no pensamento crítico à Elza Soares no canto insurgente.
A fala reverbera como um recado e como aviso, daqueles que não se apagam com o fim do show.
Esse gesto ganha ainda mais sentido quando olhamos para o lançamento de SIX., EP de sete faixas que em apenas quinze minutos cria um universo de liberdade criativa, onde cabem rap, R&B, house e até uma piscadela para o indie rock. O título, minimalista, contrasta com a densidade de camadas que a artista propõe. Se em Taurus, Vol. 2 ela vinha mais cravada no rap, aqui a artista assume o risco de não se deixar prender por gênero ou expectativa. Há quem espere de uma rapper versos duros, batidas pesadas e a mesma fórmula repetida, mas ela, com ironia fina, parece dizer, “quem disse que minha arte tem que ser previsível?”
Faixa a faixa, SIX. se revela. Em “Quantas coisas cabem na minha bag?”, há uma reflexão quase cotidiana, mas carregada de simbolismo, fala de bagagem cultural e pessoal como quem arruma uma mala para o mundo, sabendo que a cor da pele nunca fica de fora. “Number One”, parceria com Leys, é pura afirmação de protagonismo feminino no rap, uma dobradinha que lembra a insistência de tantas artistas que ainda hoje têm que provar duas vezes seu talento num cenário onde homens são celebrados por metade do esforço. Já “Toda Garota Como Eu =(=)” com Iorigun traz uma vibe indie, melódica, que desarma quem acreditava que Duquesa seria refém do mesmo flow. E claro, “Fuso Remix” com TZ da Coronel, que brinca com ritmo e territorialidade, reafirma o trânsito entre diferentes linguagens urbanas sem perder o chão da periferia.
Essa multiplicidade é mais do que estética, é política. No Brasil em que samba, funk e pagode seguem sendo deslegitimados quando atravessam fronteiras de classe — festivais caros, ingressos inacessíveis, plateias branqueadas — o gesto de Duquesa em ocupar o palco e reivindicar autoria e legitimidade é tão necessário quanto desconfortável para alguns.
Há quem trate o elitismo cultural como detalhe, mas a realidade revela exclusões concretas, artistas negros seguem à margem dos line-ups principais e o acesso aos grandes festivais frequentemente reproduz barreiras socioeconômicas que limitam a participação de muita gente. A ironia é evidente — o Brasil que consome e exporta sua música para o mundo ainda vacila em reconhecer, no topo da programação, as mulheres pretas que sustentam e renovam a cena.
O que Duquesa constrói é continuidade e ruptura. Continuidade porque se alinha a vozes como Negra Li, Tássia Reis, Karol Conká e Drik Barbosa, que há mais de uma década reivindicam espaço e respeito para o rap feminino. Ruptura porque escolhe não repetir fórmulas de aceitação fácil, arriscando-se no híbrido, no inesperado, no que incomoda. Em tempos de algoritmos que pedem uniformidade para gerar streams, ela aposta na diversidade sonora como quem aposta na própria vida.
É preciso dizer, SIX. não é perfeito. Com apenas quinze minutos, o EP às vezes deixa um gosto de ‘quero mais’, como se cada ideia tivesse mais fôlego do que o tempo permite. É um trabalho que se resolve na coragem, mas não na densidade. Ao mesmo tempo, essa leveza pode ser vista como estratégia, liberar a pressão do “álbum definitivo” e marcar território como quem diz “isso é só o começo”. E talvez seja justamente essa falta de pretensão que torna o projeto tão potente e tão honesto.
Duquesa se coloca, portanto, no centro de uma encruzilhada simbólica: a de ser reconhecida sem ser domesticada, a de dialogar com o mercado sem se curvar a ele, a de fazer música preta sem pedir licença para quem lucra com seu embranquecimento. O palco do The Town foi só o megafone. O EP SIX. é o corpo inteiro. E o futuro? Bem, ele parece estar mais interessado em quem tem coragem de experimentar do que em quem insiste em repetir fórmulas gastas.
A questão que fica é simples e nada confortável: até quando o país vai aplaudir as vozes pretas no palco, mas seguir negando a elas o poder real de conduzir o espetáculo?
Foto: reprodução / Dri SpacaPapelpop