Apagamento no Axé Music: quem celebra e quem é esquecido?

Em 2025, o movimento musical Axé Music celebrará seus 40 anos de história, consolidado como um dos pilares do Carnaval de Salvador e da identidade cultural brasileira. Essa data é motivo de festa, mas também convida à reflexão sobre as origens, o impacto e os desafios do gênero.

Criado a partir de uma rica interseção entre elementos das religiões de matriz africana, da percussão e da história negra, o Axé Music transcendeu fronteiras e se tornou um fenômeno cultural global. No entanto, o apagamento das suas raízes e a apropriação de seus elementos originais levantam questionamentos urgentes sobre respeito à tradição e à cultura negra.

A palavra “Axé”, de origem yorubá, carrega significados profundos, representando energia, vitalidade e força espiritual. Esse mesmo contexto deu origem à sonoridade que define o Axé Music, marcada por toques de percussão e ritmos que remetem diretamente à ancestralidade africana. Contudo, à medida que o gênero ganhou projeção, seu protagonismo foi gradativamente assumido por artistas brancos, muitas vezes deixando os criadores negros restritos aos bastidores. Esse desequilíbrio não é apenas simbólico, mas reflete uma dinâmica histórica de desvalorização e apropriação que permeia diversas manifestações culturais negras.

Um caso recente que reacendeu o debate foi a polêmica envolvendo a cantora Claudia Leitte. A artista alterou a letra da música “Caranguejo”, substituindo uma referência a Iemanjá, orixá celebrado nas religiões afro-brasileiras, por uma menção a Jesus, em hebraico. Esse gesto foi amplamente criticado por simbolizar o apagamento das raízes afro-religiosas do gênero, um reflexo de seu posicionamento religioso, que frequentemente contrasta com o perfil majoritário de seu público, composto por pessoas LGBTQIAPN+ e admiradores da pluralidade cultural. Esse paradoxo levanta questionamentos sobre como a artista se beneficia da diversidade, enquanto promove ações que parecem desconsiderar ou até confrontar essas identidades.

O agravante desse episódio é que a alteração aconteceu no Candeal, um local com profunda ligação com as raízes africanas e de grande simbolismo histórico. O Candeal é uma comunidade matriarcal, com uma forte herança africana, formada por um “quilombo urbano” e um dos mais antigos bairros de Salvador. Criado pela união de Manuel Mendes e Josefa de Santana, uma negra liberta da Costa do Marfim, o Candeal nunca perdeu sua relação com as influências africanas e continua sendo um centro de resistência cultural e solidariedade. Nesse bairro nasceu Carlinhos Brown, cuja música originou novos ritmos e estilos que reverberaram globalmente. Celebrar o Axé em um lugar tão simbólico, ao mesmo tempo em que se apaga suas raízes, soou uma grande afronta.

Embora Claudia Leitte não seja a única a reincidir nesse tipo de atitude, sua postura reflete uma prática que vai além da busca por adaptação cultural: demonstra descaso com as tradições negras que deram origem ao Axé Music. Esse tipo de alteração, muitas vezes justificada como liberdade artística, expõe uma relação desigual com a história e o respeito às matrizes culturais. Trata-se de um fenômeno enraizado em uma sociedade que, por muito tempo, marginalizou e exotizou culturas africanas, enquanto se apropriava de seus elementos mais visíveis e lucrativos.

É necessário lembrar que o Carnaval de Salvador, onde o Axé Music floresceu, tem suas raízes no engajamento da população negra, em blocos afro como Ilê Aiyê e Olodum, que resistem até hoje como guardiões da memória cultural afro-brasileira. Artistas que desrespeitam essas raízes não apenas apagam parte da história do gênero, mas também alimentam a invisibilização de comunidades negras que continuam lutando por reconhecimento e dignidade. Esse comportamento é facilitado por uma estrutura que raramente responsabiliza tais atitudes, perpetuando a ideia de que a cultura negra pode ser moldada à conveniência de quem dela se apropria.

É urgente que o aniversário de 40 anos do Axé Music seja uma oportunidade não apenas para celebração, mas para reflexão coletiva. É preciso valorizar e respeitar as origens do gênero, garantindo que as vozes negras sejam ouvidas e reconhecidas como protagonistas dessa história. Relembrar o papel central das religiões de matriz africana e dos blocos afro é também um ato de resistência contra o apagamento histórico. Mais do que um convite à festa, o marco de quatro décadas do Axé Music deve ser um chamado à justiça e à consciência.

Se o Axé é energia, por que não canalizá-la para uma verdadeira transformação cultural? O que estamos dispostos a fazer para que a história negra, tão fundamental para a identidade brasileira, receba o reconhecimento que merece? Como lidamos com artistas que usufruem da diversidade cultural e social sem considerar as responsabilidades que vêm com essa visibilidade? Resta saber: estamos celebrando ou apagando?

Foto: Joilson Cesar/Ag. Picnews

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Criado por Jadson Nascimento

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