Teatro negro em espiral: por que o Brasil precisa ver o Melanina

O Melanina Acentuada Festival, em sua 7ª edição, tensiona a lógica da cultura branca que insiste em dar palco apenas a si mesma. Ele não se acomoda. Desvia. Espirala. E nesse movimento, finca posição: a dramaturgia preta é presente, passada e futura – tudo ao mesmo tempo. Não se trata de moda, de cota simbólica ou de esforço institucional. É sobre existência, reexistência e insubmissão. É sobre urgência, não concessão.

É irônico e ao mesmo tempo revelador que ainda seja necessário justificar o porque de um festival negro existir no Brasil, um país que soma 56% de sua população autodeclarada preta ou parda, segundo dados do IBGE. Ainda assim, na indústria do teatro, da TV e do cinema, os corpos negros representam pouco mais de 11% dos papeis principais, como revela o relatório da McKinsey & Company. E quando aparecem, quase sempre estão ali para cumprir a função social do estereótipo… o bandido, a empregada, a dor. A tristeza e ainda assim, o trauma.

É por isso que o melanina não pode ser visto apenas como um festival. É uma brecha. Podemos chamar de contrafissura? Um lugar onde a subjetividade negra ganha voz sem pedir desculpas. Onde o corpo preto não precisa justificar sua presença em cena. E é neste palco, que não é vitrine nem vitimização, que se abrem os portais para o inesperado. Para  a intelectualidade preta, para a beleza preta, para o riso, o choro, o erro, o acerto – tudo aquilo que a dramaturgia branca se permitiu explorar por séculos. 

Clayton Nascimento sabia bem onde estava pisando quando escreveu e interpretou MACACOS. O nome já chega como tapa. Mas não é um espetáculo panfletário. É manifesto poético. Um monólogo de três horas que zomba dos papéis a que o teatro branco quis aprisionar o ator negro. Clayton é professor, criança, político e diva. Ele transborda. Porque é disso que se trata: recusar a contenção, desbordar o molde. E sim, tudo começou com um jogo de futebol. Um estádio onde milhares se sentiram confortáveis para gritar “macaco” para um goleiro negro em rede nacional. Como se o palco da violência não fosse o mesmo, apenas trocando o figurino.

Já Jhonny Salaberg, com Parto Pavilhão, fecha a trilogia que reimagina fugas negras pelo realismo fantástico. Mas Rose, sua personagem central, não é símbolo. É mulher. É falha. É mãe. É presa. É livre. O teatro de Salaberg não deseja redimir ninguém, tampouco oferecer alívio moral ao público branco. Quer, talvez, só ser escutado. E talvez nem isso.

Entre uma peça e outra, Leda Maria Martins nos lembra que o tempo preto não é linear. É espiralado. É por isso que no Melanina o futuro caminha junto com o passado. A ancestralidade futurística proposta nesta edição não é enfeite conceitual. É filosofia aplicada, prática estética e política. Cada gesto, cada fala, cada trilha sonora encarna um outro tempo – um tempo onde corpos pretos não precisam morrer para serem lembrados.

O festival não se apoia apenas nos espetáculos, ele forma plateia. Forma pensamento. Forma imaginário. Oficinas, rodas, cafés, ateliês. Dezenas de atividades gratuitas em bairros diferentes de Salvador, acessíveis a quem não costuma ocupar plateias de veludo. Foram mais de 90 horas de programação. É um projeto de país. Ou pelo menos, do país que ainda não temos.

Aldri, que iniciou tudo isso com a mesma mente que escreveu Namíbia, Não!, sabe que o Melanina não é um evento. É uma provocação contínua. É um ensaio de mundo. E por isso precisa seguir. Porque se depender da lógica vigente, continuaremos empurrando a dramaturgia preta para as margens, para a cota simbólica, para o papel menor.

O Brasil precisa conhecer o Melanina Acentuada Festival porque ele nos aponta uma saída da caricatura. Porque ele desafia a estética do sofrimento como única chave de leitura da experiência negra. Porque ele ousa dizer que a gente também pode brincar, amar, dançar e filosofar em cena. Porque ele diz que os nossos também podem vencer prêmios, formar plateias e dirigir seus próprios espetáculos – sem mediação branca, sem tradução.

Se o teatro é espelho, então o Melanina é o estilhaço que nos obriga a refazer o reflexo. Não para nos reconhecermos como o outro deseja, mas para enfim nos vermos como somos: múltiplos, inteiros, subjetivos, potentes. E, acima de tudo, em movimento. Como o tempo espiralar que Leda diz. Como a fuga imaginada por Jhonny. Como o palco habitado por Clayton. Como o sonho persistente de Aldri.

E como toda espiral, que já nasce apontando para o infinito.

Foto: Rebecca dos Santos – @r.e.b.e.s

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Criado por Jadson Nascimento

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