Raimundo Cavalhier: “A memória também é um território de luta”

Um mergulho nas águas do Rio Catu. É assim que Raimundo Cavalhier, artista, fotógrafo, arquiteto e pesquisador nascido em Alagoinhas (BA), propõe conduzir o público em seu novo trabalho audiovisual, Memórias e Tradições. O documentário, que será lançado no dia 30 de maio no YouTube, resgata as histórias, lendas, rituais e memórias da comunidade do Buri — território que busca o reconhecimento oficial como quilombo, no agreste baiano.

Com direção e concepção assinadas por Cavalhier, o filme lança um olhar atento sobre os saberes locais e a relação ancestral com o território. Ao longo da narrativa, 14 moradores compartilham lembranças e tradições passadas de geração em geração. Há também espaço para a poesia — com textos do próprio diretor e do escritor Atanael Barros — e para a espiritualidade, presente nas práticas de fé que atravessam o cotidiano da comunidade.

“A casa é o que nos nomeia”, anuncia o artista logo na abertura do documentário. Mais do que um abrigo físico, o Buri é retratado como espaço de pertencimento, onde a resistência negra se materializa na oralidade, na relação com a terra e nas águas do Rio Catu. Após a estreia, uma exposição fotográfica com curadoria e autoria de Cavalhier será apresentada na Associação de Moradores do Buri, ampliando em imagens a experiência proposta pelo audiovisual.

Com formação em Arquitetura e Urbanismo e especialização em audiovisual e empreendedorismo, Raimundo desenvolve uma trajetória artística marcada pela valorização das raízes afro-brasileiras. Criador do conceito de “percurso ciliar” — que relaciona a preservação dos rios à proteção das memórias —, ele atua entre fotografia, vídeo e objetos artísticos, sempre impulsionado por temas como ancestralidade, território e identidade.

Suas obras já circularam em eventos e exposições nacionais e internacionais, como Arte Afro-Bahiana – Negra Fest 2024, em Medellín (Colômbia); Sopro Ancestral: Webséries – Provérbios Africanos, em Maputo (Moçambique); Ecologia de Sentidos – Panorama da 3ª Geração da Fotografia da Bahia; e Afrofotografia, pelo Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira. Seu trabalho lhe rendeu prêmios e reconhecimentos importantes, como a Medalha Zumbi dos Palmares e destaque na Expo Favela Nacional, consolidando sua atuação como artista engajado na luta por memória, representatividade e justiça social.

Memórias e Tradições foi contemplado pela Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), iniciativa do Governo Federal de incentivo à produção artística, e conta com apoio da Prefeitura Municipal de Alagoinhas.

Confira na íntegra a entrevista com o artista Raimundo Cavalhier, ao portal Diáspora.

O documentário “Memórias e Tradições” começa com a frase “A casa é o que nos nomeia”. De que forma essa ideia guia a sua relação com o território do Buri e com a construção dessa narrativa audiovisual?

Quando eu disse que “a casa é o que nos nomeia”, eu estava falando de um sentimento que carrego no corpo. Lá no Buri, tudo tem nome porque tem memória. A casa, pra mim, não é só onde a gente mora  é onde a gente aprende quem é. É o rio onde meu avô aprendeu a pescar, é o cheiro do feijão no fogo, é a sombra da mangueira onde a gente senta pra ouvir história.

Essa frase foi o ponto de partida do documentário porque é isso que eu queria mostrar, que o território não é cenário, é raiz. Cada pessoa que aparece ali carrega a casa no modo de falar, no jeito de olhar, no silêncio também. A narrativa vai sendo guiada por esse pertencimento. Não tem roteiro fechado, tem escuta. Tem respeito.

O que me interessa é isso, pegar o que estava se apagando e dar corpo de novo. Mostrar que essas memórias não ficaram no passado, elas ainda vivem, ainda ensinam. A casa nos nomeia porque é ela que guarda quem somos. E eu só estou tentando devolver esse nome com a delicadeza que ele merece.

Você traz o conceito de “percurso ciliar”, que conecta a preservação do Rio Catu à memória cultural da comunidade. Como surgiu esse conceito e de que maneira ele se traduz na estética e na estrutura do documentário?

O “percurso ciliar” surgiu da ideia de que, assim como a mata ciliar protege o rio, a gente também precisa proteger as memórias de quem viveu com ele. O Rio Catu tá secando, sim, por causa das mudanças climáticas, do descuido. E junto com a água, tá indo embora também um pedaço da história da comunidade  das lavadeiras, dos pescadores, das crianças que nadavam ali.

Esse conceito vem como um chamado: antes que tudo isso desapareça, a gente precisa guardar. Registrar. Dar um jeito de manter viva a lembrança de como era viver com o rio cheio, presente. Então, o documentário nasce como esse cuidado. Um percurso que anda pela beirada, escutando, fotografando, gravando para que a história dessas pessoas não se perca como o curso do rio vem se perdendo.

Durante as filmagens e entrevistas, houve algum relato ou momento que te tocou de forma inesperada e mudou sua própria percepção sobre o Buri ou sobre sua identidade?

Quando eu estava entrevistando Dona Bililu, chamei os netos dela pra me ajudarem. São crianças de 5 e 7 anos. Entreguei a câmera e pedi pra eles fazerem perguntas sobre a comunidade. Eles começaram a perguntar do jeito mais simples e bonito: por que o lugar se chama Buri, como era o rio antes, o que ela comia antigamente.

Ela se emocionou. Falar com os netos sobre a própria história, lembrar das águas, do tempo em que tudo era diferente… aquilo mexeu com ela. 

Naquele momento eu entendi que esse trabalho não é só sobre memória, é sobre reconexão. Sobre fazer as crianças olharem pra quem veio antes delas com interesse, com carinho, com respeito. Eu sei que daqui a uns anos isso vai ser um presente pra eles. Porque ver a avó emocionada, falando da vida com o rio, é também descobrir quem eles são.

O reconhecimento oficial do Buri como quilombo é uma das pautas centrais do filme. Quais desafios a comunidade enfrenta nessa busca e como a arte pode fortalecer essa luta por pertencimento e direitos?

Antes, muita gente da comunidade não entendia o que significava ser quilombo. Tinha quem achasse que se reconhecer como quilombola era algo ruim, como se fosse um peso, um atraso. Mas com o tempo, com os trabalhos feitos dentro da própria comunidade, as rodas de conversa, as reuniões na associação, isso foi mudando.

Hoje o Buri entende o valor dessa identidade. Entender que se reconhecer como quilombo é celebrar as memórias, as tradições, a força de quem veio antes da gente. É afirmar que a gente tem história, tem território, tem direito de existir do nosso jeito.

A arte entra nisso como ferramenta de fortalecimento. O filme mostra o Buri por dentro, com voz própria. Não é alguém de fora contando sobre nós — somos nós mesmos falando, lembrando, reivindicando. E isso tem poder. Porque quando a gente se vê e se escuta, a gente se reconhece. E quem se reconhece, luta com mais firmeza.

Já estamos em processo de solicitação da certificação oficial junto à Fundação Palmares. E essa narrativa, construída com a comunidade, é parte desse movimento. Um passo importante na luta por pertencimento e por direitos.

Você atua como fotógrafo, arquiteto, pesquisador e documentarista. Como essas linguagens se entrelaçam na sua prática artística e como influenciaram a criação de “Memórias e Tradições”?

Na minha prática, essas linguagens não estão separadas  elas se somam, se atravessam o tempo todo. A arquitetura me ensinou a observar os espaços com mais cuidado, a perceber como o território molda a vida das pessoas e como as pessoas também transformam o lugar onde vivem. A pesquisa me deu o hábito de escutar, de querer entender o que está por trás do que se vê. A fotografia veio como forma de preservar o instante, de eternizar gestos, rostos, paisagens que dizem muito sobre quem somos. E o documentário acaba sendo o espaço onde tudo isso se encontra.

Em um cenário de apagamento das culturas negras no Brasil, que caminhos você enxerga para que mais artistas periféricos e quilombolas consigam contar suas histórias com autonomia e apoio?

Essa é uma pergunta que toca fundo, porque a gente vive numa história que insiste em apagar a voz de quem sempre esteve à margem. Mas eu acredito que o caminho começa pela valorização das nossas próprias histórias, feitas por nós mesmos, com nossas referências e nossos jeitos de ver o mundo.

Para que artistas periféricos e quilombolas tenham autonomia, é fundamental criar espaços de formação e produção que sejam acessíveis e respeitem a nossa cultura. Isso passa por fortalecer coletivos, associações e redes de apoio dentro das próprias comunidades, onde a troca de saberes acontece de forma genuína.

Além disso, a presença de políticas públicas que reconheçam e financiem esses trabalhos é essencial, mas não só isso, essas políticas precisam ouvir as vozes de quem faz, entender suas necessidades e dar liberdade criativa, sem imposições de modelos externos.

A arte, quando vem do lugar da verdade e da experiência, tem um poder enorme de transformar. Ela resiste, ela denuncia, ela celebra. E quando a gente conta nossas histórias com autonomia, a gente recupera nosso lugar no mundo, a nossa memória e o nosso futuro.

Por isso, investir em educação cultural dentro das periferias e quilombos, garantir acesso a equipamentos, tecnologia, e sobretudo criar redes de solidariedade entre artistas, são caminhos que vejo como urgentes para que essa voz se fortaleça cada vez mais.

Fotos: Raimundo Cavalhier

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Criado por Jadson Nascimento

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